Não sou pretensiosa. Escrevo para mim, para que eu sinta a minha alma falando e cantando, às vezes chorando. Clarice Lispector

31.1.11

Vai passar

Caio Fernando Abreu  
   Vai passar, tu sabes que vai passar. Talvez não amanhã, mas dentro de uma semana, um mês ou dois, quem sabe? O verão está ai, haverá sol quase todos os dias, e sempre resta essa coisa chamada "impulso vital". Pois esse impulso às vezes cruel, porque não permite que nenhuma dor insista por muito tempo, te empurrará quem sabe para o sol, para o mar, para uma nova estrada qualquer e, de repente, no meio de uma frase ou de um movimento te supreenderás pensando algo como "estou contente outra vez". Ou simplesmente "continuo", porque já não temos mais idade para, dramaticamente, usarmos palavras grandiloqüentes como "sempre" ou "nunca". Ninguém sabe como, mas aos poucos fomos aprendendo sobre a continuidade da vida, das pessoas e das coisas. Já não tentamos o suicidio nem cometemos gestos tresloucados. Alguns, sim - nós, não. Contidamente, continuamos. E substituimos expressões fatais como "não resistirei" por outras mais mansas, como "sei que vai passar". Esse o nosso jeito de continuar, o mais eficiente e também o mais cômodo, porque não implica em decisões, apenas em paciência.
   Claro que no começo não terás sono ou dormirás demais. Fumarás muito, também, e talvez até mesmo te permitas tomar alguns desses comprimidos para disfarçar a dor. Claro que no começo, pouco depois de acordar, olhando à tua volta a paisagem de todo dia, sentirás atravessada não sabes se na garganta ou no peito ou na mente - e não importa - essa coisa que chamarás com cuidado, de "uma ausência". E haverá momentos em que esse osso duro se transformará numa espécie de coroa de arame farpado sobre tua cabeça, em garras, ratoeira e tenazes no teu coração. Atravessarás o dia fazendo coisas como tirar a poeira de livros antigos e velhos discos, como se não houvesse nada mais importante a fazer. E caminharás devagar pela casa, molhando as plantas e abrindo janelas para que sopre esse vento que deve levar embora memórias e cansaços.
   Contarás nos dedos os dias que faltam para que termine o ano, não são muitos, pensarás com alívio. E morbidamente talvez enumeres todas as vezes que a loucura, a morte, a fome, a doença, a violência e o desespero roçaram teus ombros e os de teus amigos. Serão tantas que desistirás de contar. Então fingirás - aplicadamente, fingirás acreditar que no próximo ano tudo será diferente, que as coisas sempre se renovam. Embora saibas que há perdas realmente irreparáveis e que um braço amputado jamais se reconstituirá sozinho. Achando graça, pensarás com inveja na largatixa, regenerando sua própria cauda cortada. Mas no espelho cru, os teus olhos já não acham graça.
    Tão longe ficou o tempo, esse, e pensarás, no tempo, naquele, e sentirás uma vontade absurda de tomar atitudes como voltar para a casa de teus avós ou teus pais ou tomar um trem para um lugar desconhecido ou telefonar para um número qualquer (e contar, contar, contar) ou escrever uma carta tão desesperada que alguém se compadeça de ti e corra a te socorrer com chás e bolos, ajeitando as cobertas à tua volta e limpando o suor frio de tua testa.
    Já não é tempo de desesperos. Refreias quase seguro as vontades impossíveis. Depois repetes, muitas vezes, como quem masca, ruminas uma frase escrita faz algum tempo. Qualquer coisa assim:
- ... mastiga a ameixa frouxa. Mastiga , mastiga, mastiga: inventa o gosto insípido na boca seca ...

30.1.11

Psicografia

   Escrever pra mim é como carta psicografada. Não tenho consciência do que escrevo. São palavras que saem facilmente, tomam vida própria e formam tudo aquilo que me dói – ou alegra – n’alma. Tudo aquilo que deliro ou sonho. Tudo aquilo que minha alma quer cantar ou gritar. Tomo nota de mim mesma a cada texto que se escreve – mas quem?

29.1.11

Sacrifícios

   “Sacrifícios não valem a pena”, ela sussurra. Enquanto na vitrola City and Colour canta “Someone come and, someone come and save my life...”. Embriaguez de lágrimas, de solidão, de carência. As palavras vem com dificuldade, ela segue entre canções que sangram, vinho tinto e dramins. Ela segue desequilibrada, tropeçando em seus próprios erros. Em sua falta de egoísmo, Raul ecoa em sua cabeça “Carpinteiro do universo inteiro eu sou”. E ela segue sendo a mártir, a otária, aquela que sempre, sempre vai chorar quando ninguém estiver olhando, sempre irá sangrar em seu lugar. Seus soluços vão se acalmando, seus olhos se fechando e enquanto essas palavras tortas concluem, Dallas Green segreda pra ela: “It's a lonesome and distant cry”... e seus olhos cerram e adormecemos.

   E Dallas Green segue ao fundo, com sua voz calma, para termos um sonho bom.

Waiting... - City and Colour 
A coma might feel better than this,
attempting to discover where to begin.
You're weighed down, you're full of something.
Of sickness, and desertion.
You're weighed down, you're full of something,
you're underneath it all.

So say goodbye to love,
and hold your head up high.
There's no need to rush
we're all just waiting, waiting to die.

Hoping a better place is all I need,
with moments of innocence and mystery.
Oh, it's the little things you miss.
Like waking up all alone.
Oh, it's the little things you miss,
when you're underneath it all.

So say goodbye to love,
and hold your head up high.
There's no need to rush
we're all just waiting, waiting to die.

All your friends seem like enemies
when you're broken down and empty.
All your friends seem like enemies
when you're broken down and empty.

So say goodbye to love,
and hold your head up high.
There's no need to rush
we're all just waiting, waiting to die.

28.1.11

Sonho e delírio

Delírio: ato de quem imagina, fantasia as palavras e fatos. Pinta com cores fortes e vibrantes o real sempre tão cinza, tão triste. Enfeita a vida com lantejoulas.
Sonho: ato de quem imagina, fantasia o futuro, espera, espera, espera. Ato de quem ainda tem esperança, ato de quem não delira, não enfeita. Mas de-se-ja.

27.1.11

Chuva

   Sussurrei no telefone, “Hoje o céu está mais estrelado do que de costume...”, sussurrei, mas você não ouviu. Muitas palavras saem de minha boca, mas poucas tem som ou sentido o suficiente para você entender. Você não entende, não é? É que eu não posso – e não consigo – ser mais clara, dói não ter todas essas sutilezas minhas. Dói dizer o real, claro e limpo, feito água de chuva mansa. E sempre chove. Chove aqui, dentro, no peito, n’alma. Chove quando você não entende, quando ele não entende, quando só ela me lê, me lê e guarda pra si. Oh, ela é doce, minha protetora e minha protegida. “O que ela quer dizer?”, você nem pensa. Você não entende mesmo, não é? Tudo bem, tudo bem. Vou tentar ser feito água de chuva mansa, mas chove tão forte agora, que está tudo coberto por uma nuvem branca, não! Como serei mais clara se essa chuva me embaça a visão? Não enxergo a mim mesma, não enxergo essas palavras que digo a você, meu protetor. Oh, que medo me dá. É tanto medo que dá vontade de ficar como criança encolhida nas cobertas que fantasia fantasia fantasia. Que tá tudo bem, tudo bem. Que você virá, vai me pegar pela mão e dizer aquelas palavras doces que me disse um dia, lembra? Agora você entende? Aquelas palavras, aquele seu tom de voz, “me deixa cuidar de você, me deixa te proteger”. Não, você não pediu. Foi assim: “quero tanto, mas tanto cuidar de você, quero te proteger”. Acho que você falou de maionese, ou margarina? Margaridas. Não, não faria sentido... Não me lembro direito, eu fantasio tudo que vejo, tudo que passo. Mas você me cuidava, me protegia. Colocava os braços em minha volta... Não digo que fazia no plano real, há uma linha muito tênue entre o real e o imaginado. E essas coisas você fazia aqui, no meu delírio diário de fantasiar suas palavras. Sim, as palavras foram reais, e eu dizia – pensava – “cuida de mim, me protege, cure essas feridas, afasta meus medos, não me deixe partir...” – eu pensava e você não notava, só sentia meu silêncio e minha respiração, sempre ofegante, sempre alerta, suspiros, suspiros... Suspiros dos que não sonham, dos que cansaram de esperar a felicidade estender a mão, suspiro de quem já não tem tanta paz de espírito. Agora está tudo mais claro, veja. Oh, meu bem, como eu queria que você me lesse, cada linha, cada vírgula, cada ponto de exclamação. Mas eu tenho a tendência – a arte? – de fazer as pessoas entenderem o que elas querem entender, mesmo eu dizendo o real limpo e claro, feito a chuva mansa. Ahhhh, essa chuva que já está virando garoa. Fria e úmida. Pobre coração... Alguém há de aquecer um dia. Eu hei de deixar – um dia.

26.1.11

Real fantasia

  No nosso delírio de fantasiar, quando se torna real confundimos o que é concreto e fantasiamos para convencer...

Fogo e arrependimento


Algumas palavras impensadas, talvez sinceras, talvez forçadas.
Algumas palavras pra pessoa errada, na hora errada... pro coração errado.

Um sorriso triste, meias palavras, dessa vez balbuciadas - por mim, pra mim - "tudo bem, tudo bem".

Não há sorriso mais...
Solidão
Cabeça baixa
Olhos que fitam o chão
Coração úmido
Em uma mão, carta
Na outra...

Fogo
e arrependimento.

A tinta preta da caneta,
que não vai apagar...
A chama do fogo
que não vai revelar...

(Penso: como pode haver espaço para mais marcas gravadas a ferro e fogo no meu peito? Tantas cicatrizes - e feridas...)

A carta...
queimei - pra você não ler.
guardei - pra eu recordar.

As palavras...
escrevi - pra desabafar.
engoli - pra não revelar.

21.1.11

A promessa




Meus olhos umedecem
As lágrimas molham os cílios
Mas não escorrem...

Correm pra dentro do meu peito
e ferem!

20.1.11

One step away

  Alertei a todos. Sou tão previsivelmente imprevisível. Meus olhos brilham – não de felicidade – é um brilho úmido, entende? Sua causa é a chuva de verão que passa repetida dentro de mim. Aquela chuva rápida, forte. Capaz de levar tudo que lhe pertence e deixar somente a dor. Não há nada pra essa chuva levar, a não ser palavras que não são mais feito lanças. Que não são farpas. Não são doces. V-a-z-i-a-s. São palavras vazias, ocas, sem uma origem específica. São tão vazias que não dizem nada sobre o que sinto, sobre a fuga, sobre o meu de-se-jo. Essa vontade louca de fugir, pegar um trem rumo ao norte e subir subir subir. Tentar alcançar uma estrela, tentar iluminar minha vida. Ou apenas me livrar dessas pessoas – que, Deus, eu juro, são tão, mas tão importantes pra mim, que quero fugir, afastá-las daqui, sou frágil demais para suportar o peso de ferir alguma delas, oh Deus, como elas são importantes, por favor, não as tire de mim. Mas que absurdo! Por que, meu Senhor, por que sou feita de contradições? Tentar me entender dói tanto, me conhecer dói tanto, mas tanto. Não aguento o fardo de ser eu mesma. Oh, me perdoe por deixar escorrer como água entre os dedos essas possibilidades de felicidade que coloca em minha frente, oh Deus, pode me perdoar? Tanto amor dentro de mim eu tenho, tanta vontade de ficar, de cuidar, de ser cuidada, de dar e receber carinho, oh, mas é tão grande essa vontade. Mas não consigo, preciso dizer Adeus - ou Até logo, eu sempre volto, sempre. Sei que chegará o dia que partirei e cairei no esquecimento e voltarei e ninguém se lembrará de mim. Como temo esse dia, Senhor. Mas eu preciso, como preciso! Dê-me o rumo, Pai, me guia. Sou tão descuidada, não posso carregar mais feridas alheias, não posso mais. Tanta confusão, tantos conflitos, tantos corações, tantas feridas, tantas lágrimas. Tanto medo. É por isso que vou embora.

Até logo...

"Tente não me esquecer, eu vou tentar sempre te lhes amar..." Bidê ou balde

19.1.11

Deus

  Mesmo para os descrentes há a pergunta duvidosa: e depois da morte? Mesmo para os descrentes há o instante de desespero: que  Deus me ajude. Neste mesmo instante estou pedindo que Deus me ajude. Estou precisando. Precisando mais do que a força humana. E estou precisando de minha própria força. Sou forte mas também destrutiva. Autodestrutiva. E quem é autodestrutivo também destrói os outros. Estou ferindo muita gente. E Deus tem que vir a mim, já que eu não tenho ido a Ele. Venha, Deus, venha. Mesmo que eu não mereça, venha. Ou talvez os que menos merecem precisem mais. Só uma coisa a favor de mim eu posso dizer: nunca feri de propósito. E também me dói quando percebo que feri. Mas tantos defeitos tenho. Sou inquieta, ciumenta, áspera, desesperançosa. Embora amor dentro de mim eu tenha. Só que não sei usar amor: às vezes parecem farpas. Se tanto amor dentro de mim recebi e continuo inquieta e infeliz, é porque preciso que Deus venha. Venha antes que seja tarde demais.
Clarice Lispector

13.1.11

Babilônia

Vamos pra Babilônia
Meu bem, meu amor
Vamos criar nossa colônia
Larga pra lá esse rancor

Ai, minha pequena
Você foi embora
Que pena!

Vou viver na Babilônia
Plantar meus devaneios
Criar minha colônia
De solidão e receio

Ai, minha morena
Você foi embora
Que pena!

Vem viver comigo

Ai, que agonia
Ai, que aflição
Você quem traz harmonia
Soltou da minha mão

Ai, minha morena
Você foi embora
Ai, minha pequena
Vem viver comigo
Ai, que pena, que pena!

9.1.11

Pink Floyd

When I was a child
I caught a fleeting glimpse
Out of the corner of my eye
I turned to look but it was gone
I cannot put my finger on it now
The child is grown, the dream is gone
And I have become comfortably numb
 
"Quando eu era criança tive uma visão fugaz
Pelo canto do olho
Eu virei para olhar mas tinha sumido
Eu não pude tocar na ferida
A criança cresceu, o sonho se foi
E eu me tornei confortavelmente entorpecido"


4.1.11

Sobre Morangos, Sobre Caio F. Abreu


"Mesmo que estejam mofados, sugere o escritor, os morangos continuam sendo morangos. Em outras palavras, Caio Fernando Abreu nos lembra em seus textos que a vida - apesar de, às vezes, ser dolorosa e um tanto cruel - continua sendo a vida. A (ainda) nossa vida." [Marcelo Secron Bessa]